sábado, 19 de junho de 2010

MEU AMIGO VAI SER CREMADO AMANHÃ EM PORTUGAL



VÍDEO ACRESCENTADO EM 03/07/2012



            Morreu ontem, 18 de junho, aos 87 anos em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias o escritor português José Saramago, a morte do escritor de "Ensaio sobre a Cegueira", cuja obra foi traduzida em 56 idiomas, com tiragens de milhões de exemplares, e, apesar da língua portuguesa ter perdido o seu único Prêmio Nobel da Literatura, minha dor é infinitamente maior do que a de todos os aficionados pela literatura... morreu hoje um grande amigo.
            O ano era 1960, eu tinha apenas nove anos de idade, e estávamos todos reunidos, parentes e amigos, em frente ao Cine Brasil Muriaé para assistir o filme “Os Dois Ladrões” , direção de Carlos Manga, com Oscarito, Cyl Farney e Irma Alvarez, em que meu primo, 14 anos mais velho que eu, Márcio Hanstenreiter, fez uma pequena ponta.
            Fora a Lambreta, com a qual desfilava pelas ruas aqui de Muriaé, a cena em que ele aparecia no filme ficou para sempre em minha memória... idealizei nele tudo o que a timidez de uma criança do interior poderia desejar... era o herói que eu queria ser.
            Muito mais tarde, nos anos 70, eu já adulto, trabalhamos juntos no Rio de Janeiro, em uma das lojas de calçados femininos, de nosso tio Dico, e esta admiração e amizade se consolidou para sempre.
            Depois, perdemos o contato... Márcio, aviador, quase não aparecia em Muriaé, separou-se da esposa vinte poucos anos atrás, os dois casaram novamente, ele foi morar em Manhuaçu (MG) e ela, em Belo Horizonte.
            Seus três filhos, o do meio, Luís, amigo querido, tem uma confecção aqui em Muriaé, os outros dois, Márcio Henrique e Afraninho, mudaram-se para Portugal, um dentista e o outro empresário.
            Depois de mais vinte anos separados, o Márcio e a Marisia voltaram a se casar, e uma das comemorações foi aqui em casa, fizemos um churrasco inesquecível, e eu, que tenho mania de fotografar e registrar tudo, talvez pela emoção de reunir pessoas tão queridas, não tirei uma única foto.
            No mês seguinte ao churrasco, os dois foram passear em Portugal, na casa dos filhos... Cheguei a comentar com a Maria Inês (minha esposa) a alegria que deveria ser para o Márcio Henrique e o Afraninho receber a visita dos pais, separados há tanto tempo, agora tão apaixonados.
            Hoje recebi um telefonema do Luis comunicando que o pai faleceu, e que será cremado amanhã em Portugal (...)
20/06/2010:
           
Ontem, ainda muito abalado com a morte do Márcio, depois “muitas” cervejas, terminei a postagem com esta frase: Qual é a importância para mim, hoje, da cremação (também amanhã), do consagrado escritor português José Saramago?
           Como estava em avançado estado “etílico” fiquei pensando em apagar o post, mas lembrei de um fato que ocorreu um pouco antes da última postagem “Rap e Grafite Virtual”, quando recebi da minha querida amiga Marli Fiorentin, do meu grupo de blogs educativos, um e-mail fazendo um comentário sobe a caricatura de Sancho Pança, 
feita pelo Sinfrônio, das caricaturas da Revista "Nosso Patrimônio", e que a Maria Inês tinha detestado (na parte superior do blog, à direita): “Diz pra Dulcinéia que ela está perfeita”e, por causa deste comentário, encontrei este poema de José Saramago: 
Dulcineia
Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.

           Não acrescentei o poema à postagem, até porque as posturas da Inês não tem nada de "vazio e mudo", muito menos se "alimenta do sangue" deste Quixote aqui, mas esta visão do sonho alimentando a realidade só fez aumentar minha admiração pelo escritor.
           São por estas coincidências corriqueiras, que os pensamentos dos outros (e “outros” aqui tem um peso imensurável) entram em nossas vidas e de lá não saem nunca mais.
           Resolvi deixar a postagem como está, assim, quem sabe, por estes mistérios da vida, mais pessoas fiquem estimuladas conhecer o genial José Saramago...

Postagem relacionada: AQUI

4 comentários:

Rocio Rodi disse...

Poxa Fernando,
Tenho optado por fazer visitas aos post dos colegas que retratam seus diferentes sentimentos por Saramago, uma ode blogueira, e tenho visto o quanto ele era(é) amado por todos, uns não conseguem ler um livro seu por considerar difícil acompanhar parágrafos longos, bem ao estilo de Kafka para alguns, mas, que estao se rendendo por comentários apaixonados, e é nessa dialética que vamos aprendendo a tocar em nossos limites, olhar o outro em nossa outridade também e quem sabe voltar atrás de certezas que nos asseguravam, Saramago tem aproximado discursos e nos ajudado a desconstruir conceitos em nome de nosso próprio desenvolvimento e porque não da "transformação". Adorei chegar aqui e ler sobre os mistéros que também te acercam durante escritas e reescritas e nos ajudam a mais rever e aprender. Beijinhos! Maria do Rocio

Maria das Graças Castro disse...

Rascunho ou não,seu texto nos fez lançar o olhar a Saramago,aos nossos modelos que a "indesejada das gentes" vai levando; fez lembrar de como ficamos orgulhosos em ver esse primo no cinema!Lembrar também eu criança admirada com este casal bonito,perfeito, com tudo pela frente num ensaio de escola de samba com os muitos amigos deles em casa de nossa tia e minha madrinha Nonoca.Veja o que a Fátima, prima e irmã de Márcio me enviou hoje por e-mail:"Veja que interessante que: José Saramago também será cremado hoje a tarde em
Lisboa. Duas pessoas com história de vida tão diversas que morreram emum país estrangeiro por escolha própria e serão cremados no mesmo dia."
Abraço
Dadace

Marli Fiorentin disse...

Querido Fernando!

Passando aqui para sair um pouco mais rica. Que coincidências, não é mesmo? Eu andava também as voltas com pensamentos do Saramago, coloquei uma frase dele no meu nick, fiz postagem sobre o olhar e logo temos essa notícia. Não comento mais porqu isso me pesa, estou cansada. Abraço, meu caro Quixote , beijos à sua Dulcinéia.

Dadace disse...

Em minhas aulas de Literatura Portuguesa na Fafism já trabalhei muito o poema abaixo de Saramago que cuja leitura partilho com os leitores de seu blog e, ainda, na época da tragédia em Louisiana no Mississipi, fiz um projeto que gerou muita discussão com textos de jornais e o livro "Ensaio sobre a cegueira".

Fala do velho do restelo ao astronauta


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)